segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A realidade é muito absurda


Várias vezes me perguntei o porquê de só agora sentir urgência de activismo. Isto porque as questões em torno das incoerências e injustiças sociais sempre me tocaram sobremaneira. Inquietação é o estado de espírito que melhor reflecte as minhas preocupações e anseios. Não deixa de ser curioso, e a meu ver extraordinariamente sensato, de ter sido nas páginas de um livro de Mário de Carvalho – “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto” – que esbarro com a resposta a esta pergunta... Às páginas tantas, num diálogo à mesa de almoço entre o advogado Carmo Velho (militante partidário) e Joel Strosse (burocrata cinquentão de uma Fundação e proponente ao Partido), o primeiro inquire sobre o porquê de só agora, volvidos tantos anos do 25 de Abril, ocorrer esta tomada de decisão. Joel responde simplesmente: “- Acho que já estou preparado!”
Precisamente. O activismo, a militância, necessitam de tempo de construção. A transferência da contestação para o espaço público, o dar a cara pelo que se acredita, o defender as nossas ideias, implica um certo amadurecimento. A eterna demanda de colocar as questões e soluções sempre na devida perspectiva.  Mas neste dado momento, a urgência pode atropelar um pouco o tempo necessário a este processo e mais ou menos preparados teremos de confirmar a presença.
Não sei se causará grande transtorno, mas dadas as circunstâncias não me sinto preparado para rolar e fazer de morto, como nos é solicitado pela narrativa da ausência de alternativa. Aliás, nunca fui muito dado a esses números circenses de cãezinhos amestrados. Decididamente, essa não é minha vocação. Quero também ter voz no debate que gira em torno das opções para o país, do rumo que devemos escolher, do contrato social que se esfuma e do Estado Social que se desmorona. Já não me chega, nem deveria chegar para nenhum de nós, limitar a intervenção democrática às domingueiras eleições. A democracia na nossa sociedade faz-se desde a reunião de pais e encarregados de educação, à Assembleia da República. Do local de trabalho, à manifestação de rua. Nenhum debate é menor e nenhum espaço menos digno. A participação no processo democrático implica aparecer, opinar, colaborar, dialogar, ponderar. E acima de tudo lembrar que em democracia há sempre alternativa.
A realidade assim nos solicita e cada vez mais nos convoca para participar, conforme as nossas capacidades e aptidões, na reformulação e redesenho do país. Um país que se quer mais democrático, mais solidário, mais respeitável. Um país esculpido por um povo honesto e trabalhador, que deve exigir que gente séria nos governe, ao contrário desta corja de malfeitores que sequestraram a democracia e a mantêm refém de uma dívida impagável, que hipotecará o futuro das gerações vindouras! A realidade neste momento específico chama-nos a tomar partido. A abstenção, a ausência de opinião, é um luxo muito acima das nossas possibilidades e implica a contínua destruição do que foi edificado em 40 anos de democracia. A realidade está patente numa rua perto de nós, entra-nos pelos olhos adentro e aloja-se no nosso âmago. Nos tempos que correm, e recorrendo mais uma vez à citada obra de Mário de Carvalho, “A realidade é muito absurda...”


Miguel Dias
24 de Fevereiro de 2014

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

LIVRe - "a sério" (Congresso Fundador)

Isto era o que eu levava preparado para o Congresso Fundador do LIVRe, na cidade do Porto nos dias 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro de 2014. Como a leitura deste texto chegava aos 5 minutos e apenas tínhamos 3 minutos disponíveis por cada pessoa tive de apresentar uma variante editada, mas mantendo a sua essência, logicamente. De seguida deixo-vos o texto na íntegra:

LIVRe - "a sério"
Como nunca me ocorre nada de particularmente inteligente ou significativo para dizer nestas ocasiões, socorro-me das palavras de outrem, que embora singelas, não deixam de ser pertinentes. São elas, simplesmente: "a paz, o pão, habitação, saúde, educação"; que Sérgio Godinho canta há 40 anos, tantos como os que temos de Liberdade. Elas não são mais que os direitos básicos fundamentais a que qualquer ser humano deveria ter acesso. Cabe às sociedades modernas facilitar e democratizar esse acesso. Mas o poeta diz mais. Afirma que “só há liberdade a sério quando houver, liberdade de mudar e decidir”. Este é o momento de sermos Livres, este é o momento em que decidimos mudar.
Não há que ter medo da noção e da construção de uma sociedade mais igualitária e solidária. Não falo aqui das repúblicas populares comunistas ou socialistas que no século passado falharam em larga escala. O Kimilsunismo, o Maoísmo, o Estalinismo e outras, não foram mais do que interpretações erradas ou abusivas do Marxismo e que na prática, de social e da justiça da luta de classes, poucos resultados tiveram. Outros vieram a seguir que enfiaram Marx na gaveta, numa estranha vergonha de mostrarem uma costela solidária ou socialista.
Paradoxalmente foi a social-democracia, inspirando-se em várias filosofias e movimentos ideologicamente de Esquerda, a iniciar a construção de um modelo social europeu, que se baseia numa distribuição mais equitativa dos recursos e na defesa dos mais desfavorecidos. A Direita cavalgou nesta onda, fazendo da tentativa de atenuar a diferença entre as classes sociais uma sua bandeira. Por cá, a Direita que se diz apoiante deste modelo, assaltada que foi por um neoliberalismo feroz, desmantela o Estado Social como se este não passasse de um navio condenado a sucata num qualquer estaleiro naval. A nova panaceia para a resolução dos nossos problemas económicos parece ser uma mudança de paradigma, traduzida numa alteração de regime. Quer-se substituir a democracia representativa por uma espécie de democracia corporativista, onde quem determina as directrizes da economia nacional são meia dúzia de merceeiros que podem perceber muito de pagar impostos na Holanda ou no Luxemburgo, mas que não conseguem entender que não é criando um país em clima de saldos e um estado social em constante promoção que se construirá uma economia forte e com potencial de crescimento. Também os Mercados não entendem isto e o Governo nada faz para o explicar, cúmplice e crente da política activa de empobrecimento, baptizada de Ajustamento.
A Esquerda, nacional e europeia, assiste atónita a tudo isto e assim continua, numa altura em que a Direita extrema posições. A aposta agora é na destruição de tudo o que é público e do próprio Estado Social, na desregulamentação da economia e no esvaziamento dos direitos laborais. Está patente uma ofensiva sem precedentes aos sindicatos, na qual se tenta fazer passar a ideia de que estes são uma força de bloqueio ao desenvolvimento do país, ao contrário da sua verdadeira essência, a defesa dos direitos dos trabalhadores e o garante da tentativa secular de diminuir as desigualdades. A este ataque chamam Flexibilização.
Portugal fez congressos, debates, reuniões e mesas redondas. Assistiu às maiores manifestações populares de que há memória. Reuniu-se em grupos de trabalho e de estudo sobre as soluções alternativas para a crise. Sindicatos organizaram-se em greves, gerais e sectoriais, e em passeatas. Curiosamente nada disto parece ter surtido efeito. Talvez por duas ordens de razão. Primeiro a sociedade actual, extremamente mediatizada, vive mais do efémero do que do conteúdo. A manifestação que hoje é notícia para os grandes meios de comunicação social, amanhã é passado e nós contribuímos para esta situação, pois ficamos todos a aguardar a “next big thing” ao invés de potenciarmos o movimento actual. Somos coniventes também por não pensarmos o dia seguinte e a continuação do protesto. As coisas parecem ter um início, uma realização e um fim, quando deveriam ser perpetuadas e ligadas entre si. Isto leva-me à segunda razão. As formas de luta e de protesto, os fóruns e as alternativas apresentam-se como compartimentos estanques, vedados a qualquer influência ou contacto externo. Os sindicatos não se unem às associações e os partidos não falam com os movimentos inorgânicos. As manifestações são vistas como passeios em massa, as greves como queixas de quem não quer é trabalhar. Quando o que teria real interesse era unir todo este movimento e transformá-lo numa enorme onda de fundo, com o necessário apoio emanado de uma sobressaltada sociedade civil. Também no protesto é essencial falar de convergência.
Parece-me assim lógico que nesta encruzilhada histórica, só através da congregação das forças, do diálogo, da união, da convergência, poderemos escolher o caminho certo. Se essa convergência será conseguida por uma papoila que teima em brotar independentemente do clima adverso e do solo infértil, é talvez muito cedo para dizer. Mas não posso, não podemos deixar de tentar! Recuso render o meu país a uma corja de malfeitores, que insiste em terraplanar tudo que foi arduamente construído ao longo de 4 décadas, para depois reerguer um edifício inspirado numa arquitectura neoliberal, onde apenas cabe 1% da população, nivelando por baixo e empurrando para a pobreza os restantes 99% do povo.
Este é o momento histórico para a convergência. Este é o momento de tentar o que nunca foi conseguido neste país – uma real política de Esquerda. O tempo para uma Democracia moderna, onde a sílaba tónica esteja na vertente social, não descurando para tal um desenvolvimento sustentável, equilibrando sempre o ecológico e o económico. O tempo de lutar pela Paz Social e o Pão para todos. A altura de defender os direitos, constitucionalmente estabelecidos, à Habitação, à Saúde e à Educação. Só assim conseguiremos viver em Liberdade mesmo, mesmo, a sério...

31 de Janeiro de 2014