Cheguei à conclusão que devo ter demasiado tempo entre mãos. Isto porque resolvi experimentar a leitura do tão aguardado guião para a reforma do Estado, da autoria de Paulo Portas. A primeira coisa que me passou pela mente foi que teria descarregado um ficheiro pirateado... Aquilo não poderia ser a augurada reforma do Estado. Mas quando reparei que inúmeras personalidades já esgrimiam argumentos na praça pública, a favor ou contra o mesmo documento, percebi que era o autêntico.
Mas isso é acessório, pois já foram largamente difundidas as críticas relativamente ao corpo da letra e ao espaçamento entre linhas e parágrafos. Vamos ao que realmente importa. O documento peca por uma ausência quase total de propostas concretas. Convém esclarecer que a listagem contínua de evidências, não permite a resolução automática dos problemas. A maioria das ideias constantes neste guião, nem sequer é novidade. Funcionam como redundâncias do actual panorama político. Como se repetindo muitas vezes os mesmo erros, e plasmando-os numa folha de papel, eles de repente se corrigissem “milagrosamente”. Parece-me a revelação de uma teoria – a tautologia da evidência do erro. Sim porque o nosso erro tem um objectivo: o fim do protectorado e o regresso aos mercados, ámen!
Independentemente do guião parecer insosso, não significa isto a ausência absoluta de ideias ou princípios. É aliás sagaz na forma como está construído. Inicialmente dá-se a entender como uma proposta aberta, aparentando uma postura de magnanimidade governativa, e apelando ao diálogo com restantes partidos e parceiros sociais. O mesmo que foi vedado durante 2 anos. Lança também o isco para uma próxima revisão constitucional, que estes senhores anseiam com todas as suas forças, embora aparentem uma ilusória descontração nesta matéria. Nada disto me parece um acaso... E à medida que ia avançando na leitura, o meu espírito começou a ser imbuído pelo teor deste manifesto, marcadamente ideológico.
Nesse capítulo, faça-se justiça, este documento vem iluminar o percurso deste elenco governativo, clarificando as opções e os princípios pelos quais se rege. A teoria da inevitabilidade continua vigente, quando às páginas tantas se repete, mais uma vez, a premissa de que não há redução da despesa pública sem cortes nos salários, pensões e prestações sociais. Começa assim a desmoronar-se a falsa humildade revelada no início do escrito, continuando com o apontar de baterias ao governo anterior, tribunal constitucional, oposição, sindicatos, conjuntura nacional e internacional, clima de "crispação política" (detesto este termo), pirâmides etárias invertidas, mercados financeiros, União Europeia, identificando estes agentes como os responsáveis pelos problemas do país e os principais culpados caso o caminho fracasse. É engraçado a menção que se faz às questões etárias e à não renovação geracional, até porque não existe aqui uma única medida de incentivo à natalidade. Pelo contrário, todas as medidas que foram recentemente aplicadas ou que ameaçam ser, resultam numa contração ainda maior da natalidade. O abandono do país pela faixa mais jovem da população activa, também não irá ajudar em nada esta realidade.
Pela proposta afora, várias são as ideias estapafúrdias defendidas, como a relação entre os cortes e o crescimento macroeconómico. Mais uma vez se repete a noção de empobrecer o país, a bem de uma retoma económica que teima em não aparecer. Mas acena-se com a cenoura do fim dos cortes, como se fossem legítimos, quando se iniciar o tal crescimento económico. Fala-se de uma reforma fiscal, mas que por ora só será aplicada ao IRC, ou seja, às empresas. As famílias, Sr. Portas, aquelas que V. Ex.ª enche sempre a boca para hipocritamente defender, agradecem. Mais uma vez se fala da diminuição do número de funcionários públicos, como panaceia para resolver os problemas estruturais do Estado, mas em contraponto afirma-se a necessidade de contratar pessoas com mais formação. Estou mesmo a ver os “tachos” que se avizinham...
Mas como disse anteriormente, o teor marcadamente ideológico deste documento faz-se sentir a cada página. Está bem patente, por exemplo, na defesa da continuação do processo de privatizações, na defesa da política de concessões principalmente dos transportes públicos, na defesa de um modelo fiscal que nos meteu a todos a descontar mais, no aumento do horário laboral, na defesa de uma justiça mais amiga da economia (???), no lançamento de novas PPP’s no ensino em detrimento da escola pública que se verá esvaziada de fundos, logo de qualidade, e onde poderá surgir um novo tipo de cooperativas de ensino, “as escolas independentes”, detidas por professores e alavancadas pelo cheque-ensino, pelo incentivo reforçado às IPSS’s transferindo assim a responsabilidade social do Estado para terceiros, na alienação a privados dos hospitais que se querem públicos, na desistência da nossa indústria naval, na recorrente teoria do plafonamento das pensões abrindo caminho à tão apetecível privatização dos seus fundos, na transferência para a iniciativa privada de certas funções exclusivas (e que assim se querem num estado de direito) das forças de segurança, na extinção das freguesias (meio decisório mais próximo das populações) e no eminente ataque para a congregação de municípios.
Este folheto afirma categoricamente, que não é intenção deste Governo extinguir o Estado Social, que aliás se revê no chamado “modelo social europeu”. Afirma que é por isso mesmo que o está a desmembrar, perdão reformar. Mas diz mais. Diz que este atributo, reformador, é essencial a todas as forças políticas que constituem governos democráticos, do centro-direita ao centro-esquerda (...) confrontados com a crise (...). Ficámos todos a saber que, para este senhor, os governos fora deste espectro partidário ainda que empossados na sequência de eleições, não são democráticos... Ficámos também a perceber que só em tempo de crise é necessário reformar. A meu ver as reformas (no verdadeiro sentido da palavra) ou melhorias (como eu acho que deveriam ser encaradas) devem ser executadas em altura de prosperidade e não de definhamento, onde tudo está esticado de tal forma, que qualquer alteração na equação resulta no hipotético drama social. É o caso do desemprego e dos vergonhosos cortes nas prestações sociais. Um Estado Social forte e saudável faz mais falta à sociedade precisamente em época de crise.
Gosto particularmente do capítulo 2, denominado de “Reformar é diferente de cortar”. No seguimento desse capítulo afirma-se que “Cortar” é reduzir; reformar é melhorar. Portanto quando o Governo diz que é urgente reduzir o número de funcionários públicos está, logicamente... a reformar! Isso mesmo é comprovado pela intenção do lançamento de um PREMAC 2, sigla que significa Plano de Redução e Melhoria da Administração Central. Assim, podemos facilmente chegar à conclusão que, para este Governo, cortar e reformar são indubitavelmente sinónimos!
Em jeito de resumo parece-me evidente que o pretexto de lançar o debate sobre as tarefas que devem caber ao Estado é uma falácia. O que se pretende é arranjar maneira de alienar o máximo possível à iniciativa privada e manter um Estado de serviços mínimos. Atenção: acho plausível que as pessoas defendam esta posição, independentemente de não concordar com a mesma. O que me indigna é a tentativa de disfarçar o que se está a tentar fazer, ludibriando todo um povo e mantendo-o à tona apenas pelo período indispensável para respirar.
Apesar de tudo existem princípios, quase do senso comum, com os quais concordo. Por exemplo, concordo que é preciso desburocratizar, concordo que é necessário, e urgente, despartidarizar a Administração Central, concordo que é preciso desagravar a carga fiscal, concordo com o aproveitamento e a optimização da “função jurídica e contenciosa” dos serviços públicos evitando o recurso aos grandes escritórios de advogados (vou achar engraçado explicarem isto aos principais fornecedores de recursos humanos da Assembleia da República), concordo com o impulso à reabilitação dos centros urbanos em detrimento da construção de novas áreas (sempre altamente especulativa), concordo que o Estado deve ser mais transparente. Acima de tudo, concordo que o Estado deve ser modernizado, pois como sabemos tudo chega com um certo atraso a Portugal... Inclusivamente, em alguns casos, a inteligência. Mas isso é outra reforma...
Obrigada, Miguel, por esta análise tão clara e pormenorizada do "tal documento" que diz que é para a reforma do estado. Para mim, a quem falta a paciência para ler tão enfadonhos escritos, deu para ficar com uma ideia bem mais esclarecida do que depois de ouvir a maior parte dos comentadores da nossa praça. Saído daquele senhor nada de bom se espera mas, pelos vistos, ainda conseguiste encontrar algo de positivo, mas... como dizes, "isso é outra reforma"!
ResponderEliminarObrigada
Georgina Roseira Couto