Quando eu era miúdo vivia num Beco, onde um puto chamado Zé era o terror do Bairro. Fisicamente não era muito assustador, mas emanava uma aura intimidatória que nos formatava a vontade e nos deixava à sua mercê. O Zé andava sempre a tentar surripiar as guloseimas da malta. Incrivelmente conseguia fazê-lo de forma a sermos nós voluntariamente a cedê-las. Não raras vezes levava também a demasia do gelado acabado de comprar, convencendo-nos que, no fundo, não tínhamos qualquer finalidade para aquele dinheiro. O que era justo era que o mesmo reverte-se a favor de todos e que ele se encarregaria disso. Instalava a desconfiança dizendo que o Diogo tinha dito que o Francisco não dava nada a ninguém e que o Rui tinha tirado o dinheiro ao João e que o Álvaro lhe tinha dado a mesada para ele juntar ao seu pecúlio e investir numa bola de futebol nova para jogarmos, daquelas mesmo oficiais (a tal que nunca vimos), entre outros episódios ficcionados. Os putos, de forma natural, bufavam-se uns dos outros, ajudando a manutenção desta ordem.
Zé era o mais esperto de todos e levava sempre a sua adiante. Conduzia-nos por um caminho que ele entendia ser o correcto, mas que nos deixava descontentes. Os anúncios de grandes feitos pecavam por excesso. A garotagem chegou ao seu limite e começou a conspirar pela mudança. Infelizmente ninguém se sentia em condições de guiar a revolta e as clivagens no grupo impediam as naturais alianças para o fazer. Apenas Paulinho, o mais inteligente lá do Bairro, parecia à vontade com esta situação. Mas para dizer a verdade, Paulinho estava sempre à vontade com tudo. Dava-se bem com Zé e seu séquito, mas também com os putos ostracizados. Conseguia ser o fiel da balança, mas sempre da pior forma. Dizia meias verdades para defender a sua posição de pretensa neutralidade. Tinha a mania que era a Suíça lá da Rua... Estranhamente esta situação era encarada de forma condescendente pelo pessoal.
Foi então que apareceu Pedro, o chavalo novo lá do Bairro. Caído ali de paraquedas e com ar sério, que lhe aparentava uma idade e sabedoria superior à que efectivamente possuía, era o tipo ideal para encabeçar a sublevação. Mal começou a aparecer, percebeu-se logo que nascera para liderar. Tinha convicções fortes e inabaláveis. Mas começámos a reparar que, mesmo com tantas certezas, entrava invariavelmente em contradição consigo mesmo. Não ligámos muito, porque o que queríamos mesmo, mesmo, era livrarmo-nos do Zé... O Pedro aceitou a missão e escolheu Paulinho como seu aliado, pois entretanto este já se tinha posto a jeito e dado a entender que acataria bem ficar sob o seu protectorado. Paulinho, secretamente, sempre quis ser o Chefe do Bando, apenas nunca tinha tido coragem ou arte para lá chegar sozinho. O caminho de bufo a soldo que percorreu, não ajudava nessa conquista.
Assim Pedro vingou! O Zé foi escorraçado e nunca mais se viu no Bairro. Dizem que emigrou, mas nunca tive certeza, pois estranhamente ainda sentia a sua presença. Pedro prometeu tirar a nossa Rua da amargura. Libertá-la dos rufiões das ruas estrangeiras que andavam por ali a agoirar. Iríamos voltar a ser uma Rua alegre e divertida, como em tempos idos. Só se esqueceu de avisar que para isso acontecer, teríamos todos de hipotecar o nosso presente e a nossa dignidade. Todos, à excepção do Pedro, do Paulo e de meia dúzia de outros putos que ajudavam a reinar o Bairro. Aqueles que, equivocadamente, colocámos no leme do nosso destino.
Passado pouco tempo, o troco dos gelados foi desaparecendo cada vez mais frequentemente, até chegar ao ponto de nem gelados comprarmos. As guloseimas passaram a ser um bem escasso, pois como não tínhamos produção própria, havia necessidade de importar das ruas vizinhas, o que aumentava o nosso défice comercial. Isso era inaceitável e o melhor era cortar o mal pela raiz. Como? Deixando de consumir...
O prestígio de Pedro aumentava pelas ruas vizinhas, reflexo do definhamento do seu Bairro, vítima selecionada da austeridade imposta. Mas, lá fora, ninguém se preocupava muito com isso. Paulinho tentava internamente, através dos seus discursos acrobatas, disfarçar o óbvio. Torna-se impossível travar o mal-estar que se instala novamente na Rua. As inevitabilidades empurradas pelas nossas goelas abaixo, causavam indisposições frequentes. A indignação ia florescendo. Aqui e ali apareciam bolsas de protesto, que se extinguiam quase de imediato. Porém foram estas a génese da revolta. Os putos perceberam que da união poderia surgir a força para fazer ouvir a nossa voz, clamando por justiça, por um rumo diferente. A Rua que foi do Zé era um beco sem saída, mas na nossa marcha à ré deparámo-nos com nova parede, edificada pelo Pedro e pelo Paulo. Felizmente que tínhamos guardado as marretas, para derrubar os muros que nos asfixiavam...
Dia 26 de Outubro sai à Rua e traz a tua indignação! Vamos libertar-nos dos Zés, dos Pedros e dos Paulos desta terra. Vamos derrubar a parede do beco sem saída em que querem encurralar a nação.
22 de Outubro de 2013
Miguel Dias
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